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9 de setembro de 2022

Traveler's Event 2022

 Era 2ª Feira após o almoço e o Hugo meu amigo de longa data com quem partilho o gosto pelas duas rodas e com quem juntamente com o Tiago, seu criador, gerimos o talvez maior e primeiro fórum dedicado às Scooters, liga-me para tomar café.

De Coimbra trabalha há uns anos em Lisboa. Numa esplanada aqui perto conta-me que no seu devaneio motociclista deste ano tinha resolvido não sair da Península Ibérica. Ira a Finisterra e depois logo se veria. O som da potente BMW recordou-me ao tempo que não passeava na minha velhinha Transalp... Fui sugerindo uns sítios que conhecia na zona referida e ele foi tomando nota.

Ao ir embora de novo o ronco baixinho e grave da BMW até me arrepiou.

Nos dias seguintes fui acompanhando o passeio dele por troca de mensagens, na eventualidade de ele passar perto de novo e me dar um motivo para fazer uma mão cheia de Km's ao seu encontro. Não aconteceu, mas numa quinta-feira ou assim escreve-me a dizer que estava a rumar a Lisboa para se encontrar com o Tiago. Iriam ao Traveler's Event! Onde? O que é isso.

Aqui há uns anos atrás, mais precisamente em 2015, uma conhecida marca de acessórios para motos de aventura teve a belíssima ideia de promover uma reunião de viajantes a sério, daqueles que já viajaram a sítios que nem suspeitamos existirem, por todos os continentes. Tudo circularia à volta de palestras promovidas pelos mesmos. Percebe-se que a ideia era também comercial, mas a verdade é que ouvir em primeira voz os relatos de quem atravessou a América de Buenos Aires a Nova Iorque, de quem se perdeu durante anos por Africa, ou daqueles  que tratam a Asia por tu, não só nos faz iludir que também podemos como nos sacia um pouco os sonhos. Adicionalmente, a comunidade motociclística que por natureza está por aí espalhada, tem uma oportunidade de ouro para trocar uns abraços e umas cervejas.

Ligo para lá, consigo uma inscrição à última hora, explicando que como rookye só naquele dia tinha sabido da existência do evento. Simpaticamente riem e dizem que sim, claro. Que por não ser um habitual até passaria à frente :) :)

Falo com os meus amigos e na passada sexta, depois do almoço e com toda a calma, eu e a minha fiável Transalp rumamos a Avis. Sugere-me um outro amigo que após Condeixa virasse para o interior até ao IC8 para na Sertã entrar na N2 até Abrantes, Ponte de Sôr, Vila de Rei




e por aí até à Barragem do Maranhão, mais exatamente ao parque de campismo do mesmo nome. Sim, porque todo o "encontro" desenrola-se no parque de campismo. Com tendas.


Dormimos e cozinhamos no chão, esperamos na fila do duche. Isto para mim não é novidade pois embora não seja campista gosto de passar duas ou três noites numa tenda. Surpreendeu-me a completa aceitação desta falta de conforto por parte de grande maioria dos participantes que usam motas que custam dezenas de milhares de euros e cujo capacete e casaco são mais caros que a minha mota. Vi isto com agrado. Apesar do desfilar de vários equivalentes motociclísticos  de Ferraris, Maseratis, Rolls-Royce's, etc, o ambiente era totalmente despretensioso e até humilde, com comentários respeitosos à minha modesta Transalp. Finalmente uma verdadeira mota de aventura. Teriam razão de estivéssemos nos anos 90. Agradeci o simpático  elogio.


Tenda armada, os meus amigos chegam, jantar feito no Camping Gaz e da zona onde acampamos com vista para uma albufeira desoladoramente vazia de água, subimos à entrada do parque onde se situa o Clube Náutico.


Aí facilmente absorvi o conceito e ambiente do evento. Organização meticulosa e profissional, com uma zona em que as marcas promovem e oferecem Test-Drives às suas ultimas criações, descontos exclusivos em acessórios e muitas ofertas de autocolantes e porta-chaves. Tal como numa passerelle estática alinhavam-se as T7 nas suas várias roupagens, a KTM exibia uma das suas mais recentes criações, a Norden, A BMW mostrava porque ainda não tinha atirado a toalha ao chão no segmento das Adventure e uma enorme Indian oferecia música a metade do recinto. Por todo o lado se viam motas com mais autocolantes que pintura, alusivos a locais tão populares no nosso imaginário como remotos no nosso planeta. Mais à frente um ecrã enorme (ainda maior que os outros três que se distribuíam pelo espaço) fazia as costas de um palco com quase uma sala de cinema montada na sua frente. Era ali que se sucediam os tais relatos pelos viajantes acompanhados por fotos e vídeos, saciando a nossa sede de conhecer o planeta, ou na verdade nos dando mais sede ainda. 




O meu telemóvel toca. Eram o Mendonça e o David, meus colegas e companheiros de estrada em passeios mais perto de casa e que tinham passado o dia todo a ligar-me a entusiasmar-me para ir ao evento. Se já lá estava e se estava a gostar? Então olha para as cadeiras à tua esquerda :) Pois, também lá estavam e não me tinham dito nada. Foi bom estar um pouco com eles naquele ambiente de gostos comuns. Estamos e passeamos juntos muitas vezes, mas ali soube a especial. Obrigado meus malandros. Mais acima, em dezenas de mesas alinhavam-se os comensais que se tinham esquecido do fogareiro, entre a azáfama dos empregados que os serviam. Ainda uma roulotte das farturas e cachorros, ou como agora é moderno dizer: Street Food e um bar com muitos barris de cerveja que freneticamente os clientes tentavam secar. Tudo isto no meio de uma calma e sossego não comum no meio motociclistico, com uma boa parte destes a fazerem-se acompanhar das respetivas famílias, A certa altura chamam-me a atenção para o que estava a acontecer no palco. Talvez fruto das necessidades criadas pela pandemia de má memória de que ainda estamos a viver alguns resquícios, a novidade das palestras era termos oradores... ainda em viagem! Exatamente! Vimos, falamos e ouvimos o Sérgio que anda a dar a volta ao mundo com o pai em T7 em direto do Cazaquistão, o André que está a passar Timor Leste na sua Honda Monkey e outros pelas Américas ou Ásias.

Meia-noite e o programa das festas manda-nos para a tenda. Amanhã há passeio pelas redondezas a começar bem cedo. Os meus amigos entusiasmados dizem-me que vou adorar, para não ter receio que estariam sempre comigo! Como? Não percebi! Gosto da vossa companhia mas a estrada não me causa receio, apenas respeito. Estrada, quem falou em estrada? O passeio turístico é apenas para os que começaram a andar de mota ontem e as estradas por estas bandas não são propriamente as mais interessantes do país. Amanhã vamos fazer o passeio Off-Road. Uma centena de Km´s por terra, lama, estradões, areia, buracos e pedras e TU VENS! Hesitantemente e a antever algumas dificuldades lá alterei a minha inscrição para esse passeio. Que fosse o que Deus quisesse. Esta alteração não me tirou o sono, bem pelo contrário e as minhas costas nem se queixaram da dureza do colchão insuflável.

Manhã cedo alinhamos para o briefing e após pouco mais de 500 metros de estrada passamos a rolar por terra. Com os meus amigos sempre a ajudar com dicas, mostrando o melhor caminho, corrigindo a minha velocidade e postura, a primeira meia hora não foi muito fácil mas gradualmente os regos de água, as pedras e as curvas em areia ou gravilha funda cada vez me geravam menos receio. Passamos para um local onde me sinto privilegiado por ter estado, mas que preferia nunca ter sido possível. A seca que vivemos está a deixar as nossas barragens muito baixas e as albufeiras quase vazias, tornando possível andar de mota em leitos quase secos, por baixo de pontes e entre estruturas submersas desde antes de eu ter nascido. O piso lodoso e extremamente escorregadio sobe-me de novo o nível de adrenalina, mas com concentração e ajudas consegui progredir sem quedas. Muitos sustos, sim, mas nada mais. Alguns Km´s depois deixamos o leito da albufeira saindo por uma praia fluvial. Já se está a ver, não é? De piso lodoso para areia fofa e em subida. No topo um grupo de motociclistas de telemóvel em punho filmava os que passavam, queda sim, queda não. Muitos atascavam. Eles desciam para ajudar. Alinho e respiro fundo. Vais ter de sair daqui, um dia a barragem vai voltar a encher :) Está tudo a olhar para ti, és um perfeito novato nestas andanças e a tua mota não é propriamente tecnologicamente avançada, nada de controlo de tração, Abs ou modo Slippery, por isso vais ter de fazer tudo sozinho. Revi mentalmente as lições aprendidas e arranquei. Em pé, aceleração leve e constante, mota solta debaixo de mim e corpo um pouco recuado. Ela gemia, guinava e oscilava debaixo de mim, o motor queixava-se do esforço, compensei rolando com confiança e determinação. Na subida começou a perder muita velocidade mas manteve a suficiente para chegar ao topo sem problemas. Fiquei orgulhoso de mim e da TransAlp.















Agora o piso duro e agressivo já me parecia uma estrada alcatifada. À frente as indicações do GPS mostravam a alternativa de um desvio mais suave até ao final. Perguntaram-me se queria arriscar ou preferia ir pelo caminho mais descansado. Após já uns 80 Km´s desta aventura não era agora que iria recuar. Pelo mais difícil, seja. E era mesmo mais difícil. Muita areia a alternar com piso duro e rochoso, declives acentuados. Deixei de olhar sequer para os instrumentos e apenas revia mentalmente o que aprendi e levantava o olhar para melhor ler o caminho. Tanto que após uns 20 Km´s a parecer demorar uma eternidade, chegamos ao final do percurso. Tinha completado 100 Km´s fora de estrada. Cansado, suado, coberto de pó e desidratado, mas contente, muito contente.

Fomos almoçar. Era meio da tarde mas ainda não estávamos satisfeitos. Decidimos então fazer o tal passeio turístico, sempre por estrada. Foi outra centena de Km´s mas desta feita relaxados pelas imensas retas e pequenas povoações alentejanas.

Já o sol estava baixo quando chegamos ao parque. Decidimos voltar a fazer o jantar nos nossos fogareiros e fomos rematar a refeição com uma gulosa sobremesa no tal clube náutico. Umas horas de conversa com amigos e novos conhecidos e o corpo pediu descanso. No dia seguinte era o regresso a casa.

Acordar, desmontar a tenda, arrumar tudo na mota que invariavelmente nunca volta a caber à primeira e separo-me do meu grupo. Eles são todos Lisboetas e eu iria rumar ao Norte.

Adeus Avis

Pelo caminho vejo mais barragens na "reserva"



Na noite anterior um viajante tinha-me oferecido um track para o GPS com a Nacional 2. Não a Rota N2, tão popular e comercializada, mas sim o percurso de toda a N2 que como sabemos foi feita de retalhos interligados de estradas ainda mais antigas com algumas partes até já renomeadas ou substituídas por variantes. Pretendia deslindar a zona de Santa Comba Dão mas bem mais abaixo dei por mim a sair da Rota N2 e deparar com uma estrada, estreita e sinuosa, quase deserta e calma. Fui rolando e um pouco depois resolvi parar junto a um marco para confirmar onde estava. Estava de facto na N2, mais precisamente na antiga e original N2.


Passo Pedrogão, V.N. Poiares e fico atento. Estava a chegar ao local onde a N2 tinha sido submersa pelas águas da Aguieira e tudo se conjugava para me mandar para o IP3. Graças ao GPS, à minha teimosia e à minha experiência do dia anterior em fora de estrada, entrei e saí de vias rápidas, fui dar a pontes desativadas e estradas sem saída.


Até que por fim vejo à minha frente o exato local onde a N2 submerge. Ao fundo sabe-se a aparecer de novo, mas antes resolvi, inconscientemente talvez, levar a moto o mais possível para o local da submersão. O momento pedia uma imagem. Estava sozinho e só depois de ter a roda traseira a tomar banho me recordei que o fundo podia ser lodoso. Felizmente não era… muito. Consegui voltar a arrancar sem grande dificuldade e retornar ao trilho de terra que me levaria de novo à N2.








Após uns Km’s recordei-me que estava no centro do país e eu moro na costa. Já era final da tarde e iria escurecer. Se seguisse até Viseu de daí para casa rolaria de noite. O por do sol é feito para observar de uma esplanada e a descansar, não a viajar de moto por estradas sem interesse. Assim, deixei a N2 para outro dia e rumei para Oeste. Cheguei a casa ainda com sol e com a alma cheia. Tinha sido um excelente fim-de-semana.

Obrigado aos meus companheiros de estrada, aos meus amigos de há muito e a um evento que desconhecia por completo mas que me deixou com vontade de repetir.

#travelers_event