Era 2ª Feira após o almoço
e o Hugo meu amigo de longa data com quem partilho o gosto pelas duas rodas e
com quem juntamente com o Tiago, seu criador, gerimos o talvez maior e primeiro
fórum dedicado às Scooters, liga-me para tomar café.
De Coimbra trabalha há uns anos
em Lisboa. Numa esplanada aqui perto conta-me que no seu devaneio motociclista
deste ano tinha resolvido não sair da Península Ibérica. Ira a Finisterra e
depois logo se veria. O som da potente BMW recordou-me ao tempo que não
passeava na minha velhinha Transalp... Fui sugerindo uns sítios que conhecia na
zona referida e ele foi tomando nota.
Ao ir embora de novo o ronco
baixinho e grave da BMW até me arrepiou.
Nos dias seguintes fui
acompanhando o passeio dele por troca de mensagens, na eventualidade de ele
passar perto de novo e me dar um motivo para fazer uma mão cheia de Km's ao seu
encontro. Não aconteceu, mas numa quinta-feira ou assim escreve-me a dizer que
estava a rumar a Lisboa para se encontrar com o Tiago. Iriam ao Traveler's
Event! Onde? O que é isso.
Aqui há uns anos atrás, mais
precisamente em 2015, uma conhecida marca de acessórios para motos de aventura
teve a belíssima ideia de promover uma reunião de viajantes a sério, daqueles
que já viajaram a sítios que nem suspeitamos existirem, por todos os
continentes. Tudo circularia à volta de palestras promovidas pelos mesmos.
Percebe-se que a ideia era também comercial, mas a verdade é que ouvir em
primeira voz os relatos de quem atravessou a América de Buenos Aires a Nova
Iorque, de quem se perdeu durante anos por Africa, ou daqueles que tratam
a Asia por tu, não só nos faz iludir que também podemos como nos sacia um pouco
os sonhos. Adicionalmente, a comunidade motociclística que por natureza está
por aí espalhada, tem uma oportunidade de ouro para trocar uns abraços e umas
cervejas.
Ligo para lá, consigo uma
inscrição à última hora, explicando que como rookye só naquele dia tinha sabido
da existência do evento. Simpaticamente riem e dizem que sim, claro. Que por
não ser um habitual até passaria à frente :) :)
Falo com os meus amigos e na passada sexta, depois do almoço e com toda a calma, eu e a minha fiável Transalp rumamos a Avis. Sugere-me um outro amigo que após Condeixa virasse para o interior até ao IC8 para na Sertã entrar na N2 até Abrantes, Ponte de Sôr, Vila de Rei
Tenda armada, os meus amigos chegam, jantar feito no Camping Gaz e da zona onde acampamos com vista para uma albufeira desoladoramente vazia de água, subimos à entrada do parque onde se situa o Clube Náutico.
Meia-noite e o programa das festas manda-nos
para a tenda. Amanhã há passeio pelas redondezas a começar bem cedo. Os meus
amigos entusiasmados dizem-me que vou adorar, para não ter receio que estariam
sempre comigo! Como? Não percebi! Gosto da vossa companhia mas a estrada não me
causa receio, apenas respeito. Estrada, quem falou em estrada? O passeio turístico
é apenas para os que começaram a andar de mota ontem e as estradas por estas
bandas não são propriamente as mais interessantes do país. Amanhã vamos fazer o
passeio Off-Road. Uma centena de Km´s por terra, lama, estradões, areia,
buracos e pedras e TU VENS! Hesitantemente e a antever algumas dificuldades lá
alterei a minha inscrição para esse passeio. Que fosse o que Deus quisesse.
Esta alteração não me tirou o sono, bem pelo contrário e as minhas costas nem
se queixaram da dureza do colchão insuflável.
Manhã cedo alinhamos para o briefing e após pouco mais de 500 metros de estrada passamos a rolar por terra. Com os meus amigos sempre a ajudar com dicas, mostrando o melhor caminho, corrigindo a minha velocidade e postura, a primeira meia hora não foi muito fácil mas gradualmente os regos de água, as pedras e as curvas em areia ou gravilha funda cada vez me geravam menos receio. Passamos para um local onde me sinto privilegiado por ter estado, mas que preferia nunca ter sido possível. A seca que vivemos está a deixar as nossas barragens muito baixas e as albufeiras quase vazias, tornando possível andar de mota em leitos quase secos, por baixo de pontes e entre estruturas submersas desde antes de eu ter nascido. O piso lodoso e extremamente escorregadio sobe-me de novo o nível de adrenalina, mas com concentração e ajudas consegui progredir sem quedas. Muitos sustos, sim, mas nada mais. Alguns Km´s depois deixamos o leito da albufeira saindo por uma praia fluvial. Já se está a ver, não é? De piso lodoso para areia fofa e em subida. No topo um grupo de motociclistas de telemóvel em punho filmava os que passavam, queda sim, queda não. Muitos atascavam. Eles desciam para ajudar. Alinho e respiro fundo. Vais ter de sair daqui, um dia a barragem vai voltar a encher :) Está tudo a olhar para ti, és um perfeito novato nestas andanças e a tua mota não é propriamente tecnologicamente avançada, nada de controlo de tração, Abs ou modo Slippery, por isso vais ter de fazer tudo sozinho. Revi mentalmente as lições aprendidas e arranquei. Em pé, aceleração leve e constante, mota solta debaixo de mim e corpo um pouco recuado. Ela gemia, guinava e oscilava debaixo de mim, o motor queixava-se do esforço, compensei rolando com confiança e determinação. Na subida começou a perder muita velocidade mas manteve a suficiente para chegar ao topo sem problemas. Fiquei orgulhoso de mim e da TransAlp.
Agora o piso duro e agressivo já
me parecia uma estrada alcatifada. À frente as indicações do GPS mostravam a
alternativa de um desvio mais suave até ao final. Perguntaram-me se queria
arriscar ou preferia ir pelo caminho mais descansado. Após já uns 80 Km´s desta
aventura não era agora que iria recuar. Pelo mais difícil, seja. E era mesmo
mais difícil. Muita areia a alternar com piso duro e rochoso, declives
acentuados. Deixei de olhar sequer para os instrumentos e apenas revia mentalmente
o que aprendi e levantava o olhar para melhor ler o caminho. Tanto que após uns
20 Km´s a parecer demorar uma eternidade, chegamos ao final do percurso. Tinha
completado 100 Km´s fora de estrada. Cansado, suado, coberto de pó e
desidratado, mas contente, muito contente.
Fomos almoçar. Era meio da tarde
mas ainda não estávamos satisfeitos. Decidimos então fazer o tal passeio turístico,
sempre por estrada. Foi outra centena de Km´s mas desta feita relaxados pelas
imensas retas e pequenas povoações alentejanas.
Já o sol estava baixo quando
chegamos ao parque. Decidimos voltar a fazer o jantar nos nossos fogareiros e
fomos rematar a refeição com uma gulosa sobremesa no tal clube náutico. Umas
horas de conversa com amigos e novos conhecidos e o corpo pediu descanso. No
dia seguinte era o regresso a casa.
Acordar, desmontar a tenda, arrumar tudo na mota que invariavelmente nunca volta a caber à primeira e separo-me do meu grupo. Eles são todos Lisboetas e eu iria rumar ao Norte.
Adeus Avis
Pelo caminho vejo mais barragens na "reserva"
Na noite anterior um viajante tinha-me oferecido um track para o GPS com a Nacional 2. Não a Rota N2, tão popular e comercializada, mas sim o percurso de toda a N2 que como sabemos foi feita de retalhos interligados de estradas ainda mais antigas com algumas partes até já renomeadas ou substituídas por variantes. Pretendia deslindar a zona de Santa Comba Dão mas bem mais abaixo dei por mim a sair da Rota N2 e deparar com uma estrada, estreita e sinuosa, quase deserta e calma. Fui rolando e um pouco depois resolvi parar junto a um marco para confirmar onde estava. Estava de facto na N2, mais precisamente na antiga e original N2.
Passo Pedrogão, V.N. Poiares e fico atento. Estava a chegar ao local onde a N2 tinha sido submersa pelas águas da Aguieira e tudo se conjugava para me mandar para o IP3. Graças ao GPS, à minha teimosia e à minha experiência do dia anterior em fora de estrada, entrei e saí de vias rápidas, fui dar a pontes desativadas e estradas sem saída.
Após uns Km’s recordei-me que estava no centro do país e eu moro na costa. Já era final da tarde e iria escurecer. Se seguisse até Viseu de daí para casa rolaria de noite. O por do sol é feito para observar de uma esplanada e a descansar, não a viajar de moto por estradas sem interesse. Assim, deixei a N2 para outro dia e rumei para Oeste. Cheguei a casa ainda com sol e com a alma cheia. Tinha sido um excelente fim-de-semana.
Obrigado aos meus companheiros de
estrada, aos meus amigos de há muito e a um evento que desconhecia por completo
mas que me deixou com vontade de repetir.
#travelers_event
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